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Poemas Selecionados

Nenhuma Dor
O Ferrageiro de Carmona
Suave Caminho
Al Monte Donde Fue Cartago
Idílio
Frustração
Chuva
Se Eu Conversasse com Deus

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Nenhuma dor

Minha namorada tem segredos
Tem nos olhos mil brinquedos
De magoar o meu amor
Minha namorada muito amada
Não entende quase nada
Nunca vem de madrugada
Procurar por onde estou
É preciso, ó doce namorada
Seguirmos firmes na estrada
Que leva a nenhuma dor
Minha doce e triste namorada
Minha amada idolatrada
Salve-salve o nosso amor

- Torquato Neto, em "Os últimos dias de paupérie".

O Ferrageiro de Carmona

Um ferrageiro de Carmona,
que me informava de um balcão:
Aquilo? É de ferro fundido,
foi a forma que fez, não a mão.

Só trabalho em ferro forjado
que é quando se trabalha ferro
então, corpo a corpo com ele,
domo-o, dobro-o, até o onde quero.

O ferro fundido é sem luta
é só derramá-lo na forma.
Não há nele a queda de braço
e o cara a cara de uma forja.

Existe a grande diferença
do ferro forjado ao fundido:
é uma distância tão enorme
que não pode medir-se a gritos.

Conhece a Giralda, em Sevilha?
De certo subiu lá em cima.
Reparou nas flores de ferro
dos quatro jarros das esquinas?

Pois aquilo é ferro forjado.
Flores criadas numa outra língua.
Nada têm das flores de forma,
moldadas pelas das campinas.

Dou-lhe aqui humilde receita,
Ao senhor que dizem ser poeta:
O ferro não deve fundir-se
nem deve a voz ter diarréia.

Forjar: domar o ferro à força,
Não até uma flor já sabida,
Mas ao que pode até ser flor
Se flor parece a quem o diga.

- João Cabral de Melo Neto.

Suave Caminho

Assim… Ambos assim, no mesmo passo,
iremos percorrendo a mesma estrada;
tu – no meu braço trêmulo amparada,
eu – amparado no teu lindo braço.

Ligados neste arrimo, embora escasso,
venceremos as urzes da jornada.
E tu – te sentirás menos cansada,
e eu – menos sentirei o meu cansaço.

E, assim, ligados pelos bens supremos,
que para mim o teu carinho trouxe,
placidamente pela vida iremos,

Calcando mágoas, afastando espinhos,
como se a escarpa desta vida fosse
o mais suave de todos os caminhos.

- Mário Pederneiras

Al Monte Donde Fue Cartago

Excelso monte do el romano estrago
eterna mostrará vuestra memoria;
soberbios edificios do la gloria
aún resplandece de la gran Cartago;

desierta playa, que apacible lago
lleno fuiste de triunfos y victoria;
despedazados mármoles, historia
en quien se ve cuál es del mundo el pago;

arcos, anfiteatros, baños, templo,
que fuistes edificios celebrados
y agora apenas vemos las señales;

gran remedio a mi mal es vuestro ejemplo:
que si del tiempo fuistes derribados,
el tiempo derribar podrá mis males.

- Gutierre de Cetina

Idílio

Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,
Colher nos vales lírios e boninas,
E galgamos dum fôlego as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas;

Ou, vendo o mar, das ermas cumeadas
Contemplamos as nuvens vespertinas
Que parecem fantásticas ruínas
Ao longe, no horizonte, amontoadas:

Quantas vezes, de súbito, emudeces!
Não sei que luz no teu olhar flutua;
Sinto tremer-te a mão, e empalideces...

O vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das cousas se insunua
Lenta e amorosa em nossos corações.
- Antero de Quental

Frustração

Foi bonito
O meu sonho de amor
Floriram em redor
Todos os campos em pousio
Um sol de Abril brilhou em pleno estio,
Lavado e promissor
Só que não houve frutos
Dessa primavera
A vida disse que era
Tarde demais
E que as paixões tardias
São ironias
Dos deuses desleais
- Miguel Torga, Diário XV

Chuva

Como se move a cama nestas
Noites de árvores que gesticulam
Quando pipoca forte a chuva
Brinquedo de lata, a chuva, com garbosos cascos
Trotando por sobre o teto sem fim
Viajando para o passado

Por sobre velhos caminhos o galope da chuva
Escorrega, reduz a marcha, de novo acelera
Atravessando muitos, confusos anos;
Mas ele não consegue jamais dar o mergulho
No ponto mais profundo do passado
Porque o sol está lá.
- Vladimir Nabokov

Se Eu Conversasse Com Deus

Se eu conversasse com Deus
Iria lhe perguntar:
Por que é que sofremos tanto
Quando viemos pra cá?
Que dívida é essa
Que a gente tem que morrer pra pagar?

Perguntaria também
Como é que ele é feito
Que não dorme, que não come
E assim vive satisfeito.
Por que foi que ele não fez
A gente do mesmo jeito?

Por que existem uns felizes
E outros que sofrem tanto?
Nascemos do mesmo jeito,
Moramos no mesmo canto.
Quem foi temperar o choro
E acabou salgando o pranto?
- Leandro Gomes de Barros